terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

As Origens e a Singularidade do Povo Paulista


Hoje sabemos que a colonização de São Paulo leva um tempero diferente do restante da colonização da América Portuguesa pelo fato d'os paulistas adotarem a nova terra como nenhum outro povo fez. Criou-se uma língua própria, costumes únicos e um amor que se viu pouco nos outros lugares de colonização portuguesa. ¹ Mas o que levou esses europeus - portugueses, flamengos, franceses e outros ⁷ - a atravessarem um oceano e a adotar como lar definitivo um lugar tão inóspito e desconhecido como as florestas paulistas? A pesquisadora polonesa Anita Novinsky responde: a ânsia de liberdade, a sede duma terra livre e justa. ²

Para que se possa entender melhor, é preciso romper com aquilo que comumente é aprendido na escola. Os que vieram para São Paulo não vieram explorar para em seguida ir embora. Nossos ancestrais vieram fugidos de Portugal, atemorizados pela Inquisição. Os primeiros paulistas eram judeus praticantes ou cristãos-novos (judeus já cristãos, mas assombrados pelo fantasma do «sangue impuro»). O próprio Martim Afonso de Sousa não só era descendente do rei Afonso III de Portugal por linhagem bastarda, mas se acreditava ter sangue de cristão-novo advindo da sua avó paterna. Essa hipótese nunca foi confirmada, mas tal fama existia já entre seus contemporâneos. O que se sabe com segurança é que esse pioneiro de SP era amigo e protetor dos cristãos-novos. O pesquisador Marcelo Bogaciovas afirma que Sousa facilitou a vinda de conversos para a capitania de São Vicente, em grande escala, sabendo que as novas terras poderiam se converter em refúgio distante da metrópole, onde a Inquisição era mais presente. ³ Novinsky ainda postula que para esses cristãos-novos São Paulo se converteu na Terra Prometida. ¹

Durante o domínio espanhol, o receio em relação aos paulistas cristãos-novos era notório, constando na Real Cédula de 1602 o desprezo pelas gentes que «an entrado por el rio de la plata y otras partes con los navios de los negros y cristianos nuebos y gente poco segura en las cosas de nuestra santa fee Catholica». ⁸

[tradução: entraram pelo Rio da Prata e outras regiões com os navios dos negros e cristãos-novos e gente pouco firme nas coisas da nossa Santa Fé Católica]

Até mesmo a maior figura da época colonial, a quem não só São Paulo deve muito, mas também o Brasil e Portugal, era judeu. O valente Raposo Tavares foi de São Paulo, ao sul e ao Amazonas, percorrendo e cruzando o trópico de Capricórnio e a linha do Equador em suas várias expedições. Esse homem era um explorador, um revolucionário, um político e um idealista e em seus feitos não teve quem o superasse na história do Novo Mundo, segundo o historiador português Jaime Cortesão. ⁴ Nas palavras de Júlio Mesquita Filho, esse é o herói duma das mais famosas façanhas de que guarda memória a história da humanidade. E o motivo de seus feitos terem sido relegados ao esquecimento por séculos e ainda serem discriminados pelos historiadores? O antissemitismo e o antijudaísmo.

Os paulistas se acercam da liberdade desde tempos imemoráveis, seja do jeito que for. No começo de tudo, era defendendo a liberdade de cada homem resistir a uma religião imposta pela força. Os jesuítas das Missões estavam vinculados à feroz Inquisição de Lima, braço da Igreja de Roma que julgava e combatia toda ameaça e heresia à fé católica na parte sul dos domínios espanhóis, e serviam como seus comissários. Esses padres eram encarregados de perseguir e prender os Paulistas por seus «horrendos crimes», ou seja, o ódio e a violência dos Bandeirantes contra os jesuítas não era gratuito e não era por motivos econômicos, e sim por defesa. Eles representavam a Inquisição, órgão que feria a dignidade humana e a que os paulistas se opunham ferozmente. Enquanto São Paulo esteve sob o jugo da Espanha, os homens da Companhia de Jesus enviavam anualmente cartas a El Rey para contar sobre os crimes dos Bandeirantes, acusando-os de matarem súditos reais impiedosamente. Esses senhores criaram a uma «lenda negra» em torno de nós, Paulistas, baseada em falsas provas. Tal lenda paira até hoje sobre a nossa história.

E por que isso só se faz público agora? Porque os paulistas, assim como os portugueses, viviam a «cultura do segredo». Os que rompiam com isso eram os jesuítas ao nos denunciarem, que lembravam sempre que pudessem que os paulistas eram «judeus secretos» ou que «eram cristãos, mas agiam como judeus». Em carta ao rei Filipe IV de Espanha, Francisco Vasques Trujillo declarou que os paulistas eram «falsos cristãos».⁶ Já o Padre Antonio Ruiz de Montoya, dito maior inimigo dos judeus, dizia que os paulistas eram autênticos aliados de Satanás. Nas crônicas jesuíticas os Bandeirantes eram ainda chamados de corsários, piratas, bandidos, facínoras, bestas, feras. Ainda hoje historiadores sul-americanos compram essa fábula. Não podemos aceitar sem discussão as fontes jesuítas, pois eles manipulavam seus escritos de acordo com os fins que desejavam alcançar, dizem Basílio de Magalhães, Alfredo Ellis Junior, Júlio de Mesquita Filho e Jaime Cortesão. Quem ensinava os índios a odiarem os bandeirantes eram os jesuítas. A iconografia das missões mostrava Satanás como Bandeirante, um homem barbudo, de tipo paulista, agitando as asas. ⁴ Mas, hoje, diz Novinsky, documentos provam que os jesuítas usavam os índios no trabalho braçal e que havia muitos deles que queriam abandonar os domínios da Companhia de Jesus para virem embora viver com os Bandeirantes. ² Tudo isso se fez público com a abertura do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde estão os documentos de toda a história do Império Português.



Extensão máxima da Capitania de São Paulo (1707)

A disputa dos Paulistas com os jesuítas carregava a vontade de um mundo livre. Não aceitávamos nem as palavras nem as leis de quem repetia que tínhamos aliança com o demônio. E a história não para por aí. Os Paulistas tínhamos uma vontade de autodeterminação latente que vez ou outra se manifestava. Em 1639, a Inquisição de Lima ordenou a detenção de Raposo Tavares e enviou um comissário para buscá-lo. O mensageiro do Santo Ofício foi morto pelos paulistas. ⁵

Não se pode pensar que os jesuítas defendiam a liberdade dos índios por serem a voz dos direitos humanos. No artigo «A Conspiração do Silêncio: Uma História Desconhecida sobre os Bandeirantes Judeus no Brasil», a polonesa Anita Novinsky escreve:

«São falsas também as alegações de que os Bandeirantes eram bandoleiros e impiedosos, pois sua generosidade e capacidade de sacrifício contradizem essas falsas alegações.»

O português Jaime Cortesão repete incessantemente que os jesuítas forjaram os crimes dos Bandeirantes. O ódio aos paulistas era tão grande que o Bispo e o Inquisidor Mor de Lisboa foram contra a independência de Portugal, pois esta dificultaria o julgamento dos Paulistas pela Inquisição. ⁵

Os Paulistas reprovavam os dogmas exagerados da Santa Mãe Igreja e combatiam as superstições e o facciosismo dos homens da Companhia de Jesus. Porém, é importante esclarecer que a maioria dos Bandeirantes não era judaizante. Eles mantinham alguns costumes e a identidade judaica, mas sem prática religiosa. Eram como os judeus modernos, «judeus sem religião», diz Novinsky. Será difícil saber a dimensão dos costumes judaicos mantidos pelos Paulistas devido à cultura do segredo em que a sociedade vivia. O que sabemos é que sob o domínio dos reis portugueses, os habitantes da capitania de São Vicente, Santo Amaro e posteriormente São Paulo sentiam-se à vontade para judaizar, devido à distância da metrópole e ao grau de autonomia que lhes era dado, devido à falta de riquezas nessas terras. ⁷ Outro ponto importante é que nem todos os jesuítas pensavam da mesma maneira e agiam com o mesmo ódio. Muitos jesuítas portugueses fomentavam e participavam das Entradas dos Paulistas. Entre os castelhanos o apoio aos paulistas acontecia entre aqueles que também eram descendentes de cristãos-novos. ⁵

O Bandeirante diante da Cruz, em desenho de Belmonte

A diferença de São Paulo e das outras nações da América Portuguesa pode ser explicada pela nossa história e o que aqui foi exposto é de suma importância para o nosso entendimento. Embora as outras regiões do Império Português tivessem a presença do cristão-novo, essa visão marrana do mundo, tão manifesta nas Bandeiras, deu uma característica sui generis aos domínios paulistas. Na sociedade portuguesa havia duas mentalidades irreconciliáveis. Alguns cristãos-velhos voltaram-se para dentro, num conservantismo e falta de inovação que tanto prejudica algumas sociedades até os dias de hoje. Mantiveram sua mente nublada por preconceitos. Os convertidos voltaram-se para um mundo novo, para as renovações e construções de novos valores, para os avanços da Ciência, das Letras e da Medicina, isso por pura necessidade de sobrevivência. Alguns cristãos-velhos seguiram essa mentalidade também. E hoje, mesmo São Paulo sendo esse recanto cristão que é e tendo recebido imigrantes sem nenhuma ascendência judaica, essa mentalidade marrana permanece e age nas nossas vidas. O espírito singular das Bandeiras e dos primeiros paulistas fez São Paulo ser o que é. O nosso anelo por liberdade nos fez ÚNICOS e não podemos jamais perder as características que nos fazem tão PAULISTAS. E jamais devemos nos calar sobre os nossos feitos e aceitar calados os absurdos que dizem sobre nós. Jamais.

Por Lucas Pupile

Bibliografia:

¹ NOVINSKY, Anita. Os cristãos-novos no Brasil colonial: reflexões sobre a questão do marranismo, Tempo, vol. 6, núm. 11, 2001 (Acesse aqui: http://migre.me/vdlci)
² Raposo Tavares - Série Construtores do Brasil (Acesse aqui: http://migre.me/vdkX4
³ BOGACIOVAS, Marcelo Meira Amaral. Tribulações do povo de Israel na São Paulo Colonial, 2006 (Acesse aqui: http://migre.me/vdlhd)
⁴ CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil in Obras Completas, vol. 9, Portugália Editora, 1958.
⁵ NOVINSKY, Anita. A “Conspiração do Silêncio”: uma história desconhecida sobre os Bandeirantes Judeus no Brasil (Acesse aqui: http://migre.me/vdljh)
⁶ Anais do Museu Paulista, Imprensa Nacional, São Paulo, 1949. Volume XVIII.
⁷ FALBEL, Nachman. Sobre a presença dos cristãos-novos na Capitania de São Vicente e a formação da Etnia Paulista. REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 112-119, março/maio 1999 (Acesse aqui: http://migre.me/vdlkM)
⁸ LEWIN, Boleslao. El Judío en la Epoca Colonial, Buenos Aires, Ed. Colegio de Estudos Superiores, 1939 


6 comentários:

  1. Poderia vender alguns livros citados.

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  2. Finalmente um texto que faz justiça aos bandeirantes e ao povo paulista. Sou descendente de portugueses (Arruda, Corrêa, Arruda Leite, Arruda Camargo)por parte de meu pai e esse texto muito me deixou feliz e orgulhoso.Obrigado.

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  3. Historiadores são, muitas vezes, tendenciosos. Por isso o mais adequado é conferirmos a documentação antes de acreditarmos no que eles dizem. Não há nenhuma razão pela qual devamos acreditar que Raposo Tavares fosse judeu. Em primeiro lugar a ocupação da região onde hoje está SP, foi feita por uma ordem de cavalaria fundamentalista cristã chamada “Ordem de Cristo”. Isso nos diz que seu pai e ele também, jamais teriam galgado o posicionamento que tiveram se não fossem católicos. Depois Raposo Tavares era um fidalgo português, um nobre proveniente de uma das mais antigas famílias da nobreza de Portugal cujo brasão se encontra na sala do palácio de Sintra, um local dedicado às famílias nobres que fundaram Portugal, portanto da mais alta nobreza portuguesa. Esse dado, por si só já nos revela sua religião católica.

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  4. Sou Paulista de 7 gerações, minha família esta presente em São Paulo desde 1808 vindo para o Brasil com Dom João VI....O CAPITÃO TITO CORRÊA DE MELLO nascido em São Paulo em 1819 foi meu tetravô. Viva a nação Paulista...(TARCÍSIO CORRÊA DE MELLO)

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  5. Orgulho de ser Brasileiro, sou de minas gerais, portanto esse orgulho de ser paulista tem que tomar cuidado para não virar pretexto para separatista. tenho amigos de são paulo contrários a essa onda separatista, afinal de contas somos todos Brasileiros.

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